Levíticos 18 - Uma análise ampliada
Em 2021 escrevi um desabafo diante do crescente uso distorcido das Escrituras para justificar preconceito contra pessoas LGBTQIA +. Passados quatro anos, essa distorção continua, mas hoje contamos com estudos mais acessíveis, avanços jurídicos e uma maior visibilidade de vozes afirmativas até mesmo dentro do cristianismo. O objetivo deste texto é aprofundar a análise escriturística iniciada em 2021, incluir evidências históricas e situar a discussão nos direitos humanos.
Não dá para abordar Levítico 18 (ou qualquer outro texto polêmico) sem lembrar que a Escritura foi escrita em contextos culturais, sociais e linguísticos completamente diferentes dos nossos. Cada palavra, cada proibição, cada lista de abominações tinha um significado próprio para um povo específico, enfrentando desafios e mentalidades bem distantes do século XXI.
O artigo “Uma Análise Hermenêutica sobre a Homossexualidade nos Discursos Bíblicos do Novo Testamento” (Habowski & Conte, 2019) enfatiza justamente isso: aplicar um texto antigo de forma literal hoje, sem esse filtro crítico, é receita certa para anacronismo, distorção e até para reforço de preconceitos. Eles mostram que o texto bíblico passou por séculos de cópias, traduções, adaptações culturais e religiosas. O sentido original, muitas vezes, se perde ou se transforma a cada etapa. E mais: quem interpreta de forma rasa ou tendenciosa acaba usando a Bíblia para justificar exclusão e violência, ignorando a própria mensagem maior das Escrituras, que é a dignidade, o cuidado e a justiça. Por isso, antes de qualquer aplicação prática ou juízo sobre “abominação” ou “proibição”, é fundamental perguntar: para quem esse texto foi escrito? Em que época? Em que língua? Qual era a situação social, religiosa e cultural daquele povo? Só assim escapamos do erro de importar para hoje regras, códigos e condenações que não faziam (e nem podiam fazer) referência direta à realidade atual, principalmente no que diz respeito à diversidade sexual e de gênero. Adotar esse olhar crítico e respeitoso é, na verdade, dar mais valor ao texto, e não menos. E é o mínimo que se espera de quem leva a sério a justiça e o amor ao próximo.
A LEI DE MOISÉS: DESTINATÁRIOS, PROPÓSITO E LIMITAÇÃO TEMPORAL
Levítico 18-20 é endereçado explicitamente aos “filhos de Israel” (Lv 18.1-2). Trata‑se de um código civil‑religioso para o antigo Israel. Lembre-se que Paulo afirma que “a Lei nos serviu de aio” (Gálatas 3.24‑25), um tutor temporário, não um estatuto perpétuo para todos os povos.
O mesmo capítulo que condena relações homoafetivas manda apedrejar médiuns (Lv 20.27) e queimar quem casar com mãe e filha (Lv 20.14). Poucos hoje defendem aplicar essas penas literalmente. Por que então escolher apenas o verso sobre homens deitados com homens? Os religiosos são seletivos. Quando convém falam que vivemos na Graça, e quando não tentam aplicar a Lei que acabou em Cristo na Cruz!
Leituras recentes de Levítico 18.21-23
O trecho de Levítico que proíbe “deitar-se homem com homem como se fosse mulher” (v. 22) aparece dentro de um bloco de três determinações cultuais: a proibição do sacrifício de crianças a Moloque (v. 21), o veto ao sexo entre homens (v. 22) e a censura a relações com animais (v. 23). O próprio encadeamento sugere que o autor tem em vista práticas religiosas consideradas impuras e não um catálogo universal de moral sexual.
Moloque era uma divindade amonita cujo culto envolvia, segundo fontes antigas, a imolação de crianças no fogo. Ritos cananeus de fertilidade recorriam a sexo ritual, inclusive entre homens ou com prostitutas sagradas, para garantir colheita, chuva e prosperidade. Levítico, escrito para distinguir Israel de tais cultos, condena qualquer participação nesses ritos.
Texto hebraico (BHS): וּמִֽזַּרְעֲךָ֥ לֹא־תִתֵּ֖ן לְהַעֲבִ֣יר לַמֹּ֑לֶךְ וְלֹ֧א תְחַלֵּ֛ל אֶת־שֵׁ֥ם אֱלֹהֶ֖יךָ אֲנִ֥י יְהוָֽה׃
22 וְאֶ֙ת־זָכָ֔ר לֹ֥א תִשְׁכַּ֖ב מִשְׁכְּבֵ֣י אִשָּׁ֑ה תּוֹעֵבָ֖ה הִֽוא׃
23 וּבְכָל־בְּהֵמָ֛ה לֹא־תִתֵּ֥ן שְׁכָבְתְּךָ֖ לְטָמְאָה־בָ֑הּ וְאִשָּׁ֗ה לֹֽא־תַעֲמֹ֞ד לִפְנֵ֧י בְהֵמָ֛ה לְרִבְעָ֖הּ תֶּ֥בֶל הֽוּא׃
O hebraico tôʿēvâ usado no versículo costuma referir-se a práticas idólatras ou cerimonialmente impuras. Não é um termo técnico para “imoralidade sexual” em geral, mas um marcador de algo que viola a santidade cultual do povo. A Septuaginta, primeira tradução grega da Bíblia, opta por termos como anomia (“ato ímpio”) ou bdelygma (“coisa repugnante”), reforçando a ideia de profanação religiosa. Abaixo deixarei em uma tabela a comparação entre o hebraico e a LXX (Septuaginta), se você estiver lendo pelo facebook adaptei para os leitores da rede.
v. 21
Texto hebraico (BHS): “Não darás da tua semente para fazer passar a Moloque...”
Texto grego (LXX): “Não darás da tua descendência para servir a um archón (senhor/deus) e não profanarás o Nome santo...”
Observação de sentido: Sacrifício infantil ligado a ritos de fertilidade do deus Moloque.
v. 22
Texto hebraico (BHS): “Com macho não te deitarás ‘cama de mulher’; tô‘evâ é.”
Texto grego (LXX): “Com varão não te deitarás cama de mulher; bdélygma é.”
Observação de sentido: A palavra-chave tô‘evâ / bdélygma denuncia impureza cultual típica de idolatria.
v. 23
Texto hebraico (BHS): “Com qualquer animal não porás a tua cópula... tevel é.”
Texto grego (LXX): “A mulher não se colocará diante de animal para deitar-se; myséron é.”
Observação de sentido: Bestialidade, igualmente rotulada como contaminação ritual.
tôʿēvâ (תּוֹעֵבָה) aparece nos profetas para idolatria (Dt 7.25; 12.31; 1Rs 14.24).
A Septuaginta verte por βδέλυγμα (bdélygma), termo que, no grego bíblico, designa ídolos ou alimentos impuros. Isso indica que a transgressão é lida, antes de tudo, como violação da santidade litúrgica, não como infração de moral sexual genérica. O legislador associa atos que, na sua ótica, subvertem categorias vitais como vida/geração (zeraʿ, “semente”), função sexual e fronteira espécie humana/animal. É o mesmo raciocínio que aparece no resumo dos vv. 24-25: “Não vos torneis impuros com TODAS estas coisas… pois toda a terra se contaminou”. O texto não menciona mulheres com mulheres, não traz vocábulos de afeto, casamento ou pacto, ele concentra-se em misgabay ishah (“cama de mulher”): provável gíria cultual para coito anal usado em ritos de fertilidade, conforme mostram paralelos cananeus. Ou seja, o alvo não é orientação sexual (conceito moderno), mas práticas masculinas inseridas num culto estrangeiro. Os vv. 24-25 explicam o motivo: “por todas estas coisas se contaminaram as nações… a terra vomitou seus habitantes”. A preocupação é manter Israel distinto dos povos cananeus, afastando-o de rituais que combinavam sexo, sangue e magia para garantir fertilidade agrícola.
O NOVO TESTAMENTO E A LEI DO AMOR
Jesus resume toda a Lei em dois mandamentos: amar a Deus e amar ao próximo como a si mesmo (Mateus 22.36‑40). Qualquer interpretação que produza exclusão, ódio ou violência contraria o eixo central do Evangelho (João 13.35; 1 João 4.20). Vejo muitos religiosos que dizem: “Não odiamos o pecador, mas o pecado”. Contudo, posso afirmar a todos que lerem este texto que todos os que conheci e que dizem isso se mostram odiosos com essas pessoas. Já ouvi alguém da própria família declarar que, se eu fosse homossexual, me mataria. Portanto, paremos de usar máscaras de cristãos, falta-lhes óleo de peroba na cara.
Toda Escritura deve ser lida à luz de Jesus. A Escritura apresenta avanço ético interno (ex.: de escravidão regulada a fraternidade universal). Isso que faz com que os céticos e pseudodespertos pensem que o Deus do Antigo Testamento seja diferente do Novo.
A HISTÓRIA DA PALAVRA “HOMOSSEXUAL” NA BÍBLIA
Em 1526, a tradução inglesa de William Tyndale verteu 1 Coríntios 6.9 como “abusers of boys” (“abusadores de meninos”). Em 1611, a King James Version manteve dois termos distintos: “effeminate” e “abusers of themselves with mankind”. O vocábulo “homossexualidade” só seria cunhado em alemão em 1869 e, em inglês, na década de 1890. Apesar disso, foi apenas em 1946 que uma grande Bíblia — a Revised Standard Version (RSV) — usou pela primeira vez a palavra “homosexuals” no versículo; documentos internos revelam que essa escolha atendeu ao clima médico-moral da época, não a consenso exegético. Em 1959, o seminarista canadense David S. Fearon enviou uma carta de cinco páginas ao comitê da RSV denunciando a impropriedade da tradução; o presidente Luther Weigle admitiu a falha e prometeu revisão. A correção veio em 1971, quando a RSV trocou “homosexuals” por “sexual perverts”, mas milhões de exemplares já circulavam. Mesmo assim, a NIV de 1978 adotou “homosexual offenders”, disseminando o viés; só a edição de 2011 passou para “men who have sex with men”.
A pergunta que fica é: o que Paulo de fato escreveu? No grego original, Paulo emprega dois termos raríssimos: malakoi (literalmente “macios”), usado na época para rapazes efeminados ou prostitutos adolescentes, e arsenokoítai (literalmente “cama-de-machos”), expressão de cunho jurídico que aludia a exploração sexual — pederastia, estupro ou tráfico de escravos. Nenhum desses vocábulos descreve orientação sexual, conceito inexistente no século I; eles apontam práticas abusivas. Ao escolher o rótulo médico “homosexuals” em 1946, os revisores fundiram duas categorias diferentes e criaram, sem base textual sólida, a impressão de que a Bíblia condenava identidades homossexuais em si.
Nos Estados Unidos do pós-guerra, “homossexual” figurava como distúrbio nos manuais psiquiátricos, e leis antissodomia eram severas. Sob pressão de lideranças denominacionais, o National Council of Churches encarregou-se de produzir uma versão bíblica “atualizada” que refletisse a moral protestante da época. Pesquisadores como Kathy Baldock e Ed Oxford encontraram atas do comitê (arquivadas na Yale Divinity School) mostrando debates acalorados e pouca justificação filológica para o novo termo — mas, ainda assim, ele foi mantido.
A adoção do termo na RSV fez com que inúmeras traduções posteriores, em inglês e em outras línguas, importassem a palavra ou seus derivados. O resultado foi a consolidação doutrinária de que a Bíblia condena a homossexualidade enquanto identidade, fortalecendo campanhas contra direitos civis LGBT+, justificando “terapias de conversão” e influenciando leis e decisões judiciais ao redor do mundo.
DIREITOS HUMANOS E DIGNIDADE
Em 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADO 26 e o MI 4733 e decidiu que atos de homofobia e transfobia devem ser enquadrados na Lei 7.716/1989, a mesma que pune o racismo, até que o Congresso aprove legislação específica. A Corte reiterou que a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero viola a Constituição e tratados de direitos humanos assinados pelo país.
Em 2024, 36 Estados ainda criminalizavam relações homoafetivas; contudo, se considerados todos os dispositivos penais em vigor, o relatório Laws on Us da ILGA World aponta 60 países por lei e 2 de fato. O saldo, porém, segue positivo: Dominica (abr. 2024) e Namíbia (jun. 2024) descriminalizaram os atos, reduzindo o total em 2025 para 58 Estados.
Até maio de 2024, a ONU registrava 35 países com casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Em 2024-2025 juntaram-se Grécia (fev. 2024), Liechtenstein (lei aprovada em mai. 2024 e vigente desde 1.º jan. 2025) e Tailândia (lei em vigor em 22 jan. 2025). Com isso, o número chega hoje a 38 Estados, além de Taiwan, Nepal e vários territórios subnacionais.
A Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças em 17 maio de 1990.
No CID-11, em vigor globalmente desde 1º Janeiro de. 2022, a “incongruência de gênero” saiu do capítulo de transtornos mentais e passou para “condições relativas à saúde sexual”, reconhecendo que a transexualidade não é doença. Pense em um atraso…
Tudo isso importa para que aqueles que se dizem humanos e religiosos vejam o próximo como um ser humano, e não como uma condenação nem como uma simples redução a um órgão genital ou excretor.
Frases no mínimo imbecis
“Mas Deus criou Adão e Eva, não Adão e Ivo. Se Deus quisesse que dois homens ficassem juntos Ele teria criado dois homens! Não?”
Resposta: Gênesis descreve a origem da humanidade, não estabelece um único modelo familiar. Se esse fosse o caso, as pessoas criadas por avós não seriam uma família? Seria um pecado? O problema é o relacionamento amoroso entre duas pessoas do mesmo sexo?
É claro que Deus criou um homem e uma mulher, pois se não fosse assim não teria procriação, ainda mais no começo da criação. Isso não impossibilita os casais LGBTQIA + se relacionarem e serem filhos de Deus.
“Ser LGBTQIA+ é escolha.”
Resposta: Consenso científico afirma que orientação sexual e identidade de gênero não são escolhas. O relatório de consenso Measuring Sex, Gender Identity, and Sexual Orientation apresenta evidências de que orientação sexual e identidade de gênero são características pessoais estáveis que não decorrem de escolha voluntária (NASEM, 2022).
American Psychiatric Association + American Psychological Association ou APA & APA: o memorial das duas principais entidades de saúde mental dos EUA afirma, com base em evidências robustas, que a orientação sexual não é fruto de escolha individual, não pode ser “curada” e não prejudica a capacidade de formar vínculos afetivos estáveis nem de criar filhos saudáveis. Por isso, qualquer política que negue direitos civis às pessoas LGBTQIA+ carece de fundamento científico e fere seu bem-estar psicológico.
Fontes:
Baldock, K. & Oxford, E. 2025. Forging a Sacred Weapon: How “Homosexual” Entered the Bible (inédito; pesquisa de arquivos da Yale Divinity).
Baptist News Global 2023. “As a 21-year-old seminarian, David Fearon challenged the RSV translation.”
Brown, P. 1988. The Body and Society: Men, Women and Sexual Renunciation in Early Christianity.
Danker, F. 2000. A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature.
Harper, K. 2013. From Shame to Sin: The Christian Transformation of Sexual Morality in Late Antiquity.
Ho, V. 2023. “Did Christian homophobia come from a mistranslation of the Bible?” The Guardian, 1 dez.
1946: The Movie — documentário (dir. Sharon “Rocky” Rochelle, 2022; atualização 2025).
OUT South Florida 2024. “‘But the Bible Says!’ – How One Mistake Created Modern Homophobia.”
Bible Gateway, King James Version, 1 Cor 6.9 (domínio público).
The Reformation Project 2024. Briefing Paper on malakoi and arsenokoitai.
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010&ori=1&utm
https://ilga.org/news/laws-on-us-2024-lgbti-human-rights/?utm
https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/379114/9789240100374-eng.pdf?utm
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