"Ninguém Sabe o Dia nem a Hora": Uma Análise Exegética e Textual de Mateus 24:36 e Marcos 13:32
A afirmação de Yeshua (Jesus) sobre a ignorância quanto ao momento exato de Seu retorno é um dos pontos mais debatidos na cristologia. Para aqueles que compreendem Jesus como o próprio Deus encarnado, o Criador manifesto na carne,¹ a declaração de que Ele não conhece o dia e a hora pode parecer contraditória à Sua natureza divina onisciente. Mas em uma análise cuidadosa do contexto da perícope, aliada à crítica textual e à compreensão da natureza da encarnação, demonstra que essa objeção não compromete a divindade de Cristo.
1. O Contexto da Perícope: O Sermão do Monte das Oliveiras
Os textos em questão (Mateus 24 e Marcos 13) estão inseridos no Sermão Profético, proferido após Jesus ter anunciado a destruição do Templo de Jerusalém (Mateus 24:1-2). Os discípulos Lhe perguntaram privadamente sobre o tempo desses eventos e o sinal de Sua vinda (παρουσία/parousia) e da consumação dos séculos (Mateus 24:3).
A resposta de Jesus abrange eventos próximos e distantes, descrevendo sinais que precederão o fim, mas enfatizando que o objetivo principal não é fornecer um calendário, mas exortar à vigilância. Após a Parábola da Figueira, que ensina a discernir a proximidade da estação (Mateus 24:32-33), Jesus faz a declaração crucial sobre o tempo exato.
2. Análise Textual: A Variante Significativa em Mateus 24:36
A análise textual é fundamental aqui, especialmente considerando a preferência pelo Texto Majoritário (Bizantino). Existe uma diferença crucial entre a leitura de Mateus 24:36 na tradição majoritária e nas edições críticas modernas.
No Texto Majoritário, Mateus 24:36 lê-se:
Περὶ δὲ τῆς ἡμέρας ἐκείνης καὶ ὥρας οὐδεὶς οἶδεν, οὐδὲ οἱ ἄγγελοι τῶν οὐρανῶν, εἰ μὴ ὁ πατήρ μου μόνος.
(Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, senão somente meu Pai.)²
As edições críticas modernas (como a NA28), baseadas predominantemente em manuscritos alexandrinos mais antigos (como os Códices Vaticanus e Sinaiticus), incluem a frase "οὐδὲ ὁ υἱός" (nem o Filho).³
A evidência para a omissão da frase "nem o Filho" em Mateus é vasta na tradição Bizantina, incluindo a Família 35. Além disso, essa leitura é corroborada pela Peshitta (Aramaico Siríaco), conforme a transliteração:
ak8m fpa +dy f Vna Yh f[v L[w wh !yd amwy L[ [...] dwxlb aba fa aymvd
(Mas sobre aquele dia e sobre aquela hora, nenhum homem sabe, nem mesmo os anjos do céu, mas somente o Pai.)⁴
Do ponto de vista da crítica textual que favorece o Texto Majoritário, a leitura que omite "nem o Filho" em Mateus é considerada a autêntica (e assim concordo). A inclusão nos textos alexandrinos pode ser vista como uma assimilação ao texto paralelo de Marcos 13:32. Portanto, seguindo a tradição textual preferida, Mateus não afirma que o Filho desconhece o tempo.
3. Análise Exegética de Marcos 13:32 e a Natureza da Encarnação
Embora a questão seja resolvida textualmente em Mateus pelo Texto Majoritário, ela persiste em Marcos 13:32. Neste Evangelho, a leitura é unânime em todas as tradições textuais, incluindo o Texto Majoritário e a Peshitta:
Περὶ δὲ τῆς ἡμέρας ἐκείνης ἢ ὥρας οὐδεὶς οἶδεν, οὐδὲ οἱ ἄγγελοι οἱ ἐν οὐρανῷ, ----> οὐδὲ ὁ υἱός <----, εἰ μὴ ὁ πατήρ.
(Mas a respeito daquele dia ou daquela hora ninguém sabe, nem os anjos no céu, ----> nem o Filho <----, senão o Pai.)⁵
Como conciliar isso com a crença de que Jesus é Deus encarnado? A resposta reside na compreensão da Encarnação e no conceito de Kenosis (esvaziamento), conforme explicado por Hélio.⁶
A Kenosis: Uma Limitação Funcional, Não Ontológica
Filipenses 2:6-7 afirma que Jesus, "sendo em forma de Deus, [...] fez a si mesmo de nenhuma reputação (ἑαυτὸn ἐκένωσεν), a forma de servo havendo tomado". A Kenosis não significa que Cristo se despiu de Seus atributos divinos ou que Sua onisciência foi suspensa. Tal ideia é logicamente insustentável, pois, como argumenta Hélio, "é impossível que se decida não saber o que já se sabe".
A solução correta reside na distinção entre a natureza essencial de Cristo e Sua função na encarnação.
1. Natureza Divina Onisciente: Em Sua pessoa integral e divina, Cristo nunca deixou de ser onisciente. Ele sempre soube, sabe e saberá o dia e a hora, pois este conhecimento é inseparável de Sua divindade (Colossenses 2:9).
2. Função Humana e Servil: No entanto, ao se encarnar, Ele assumiu a posição de Servo e representante perfeito da humanidade (o "Filho do Homem"). Nesta capacidade, Ele operou em perfeita submissão ao Pai. A declaração de ignorância não se refere à Sua capacidade divina, mas à Sua posição oficial como servo.
Hélio ilustra isso com a analogia de um príncipe que, atuando incógnito como servo, sabe de um segredo de estado em sua qualidade de herdeiro, mas pode afirmar legitimamente não o saber em sua função de servo, pois não lhe foi comunicado oficialmente nessa capacidade. Da mesma forma, Jesus, em Sua qualidade de Filho de Deus, sempre soube a data. Mas em Sua qualidade de Servo e Filho do Homem, essa informação não fazia parte de Sua revelação oficial à humanidade. Ele não estava mentindo, pois falava a partir de Sua posição humana e funcional.
A Economia da Missão
Esta compreensão da Kenosis como uma limitação funcional está em perfeita harmonia com a economia da missão de Cristo. Ele veio cumprir a vontade do Pai (João 6:38). O conhecimento do cronograma escatológico final não fazia parte da revelação que Ele foi comissionado a trazer naquele momento.
Isso é corroborado em Atos 1:7, onde o Jesus ressuscitado diz: "Não vos pertence saber os tempos ou as épocas que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder". A ênfase está na autoridade (exousia) do Pai em determinar o cronograma.
Nesse sentido, o verbo "saber" (οἶδεν - oiden) pode ser entendido funcionalmente: não cabia ao Filho, em Sua missão terrena, acessar ou declarar essa informação. Era um conhecimento reservado à esfera da soberania do Pai no plano da redenção.
Conclusão
A objeção de que Jesus não poderia ser Deus por desconhecer o dia e a hora de Sua volta falha em dois níveis cruciais. Primeiramente, do ponto de vista textual, a tradição Majoritária em Mateus 24:36 não contém a afirmação da ignorância do Filho. Secundariamente, do ponto de vista exegético em Marcos 13:32, a limitação é compreendida à luz da Encarnação, onde o Deus onisciente, em sua função como Filho do Homem e Servo, operou dentro dos limites de Sua missão terrena (Kenosis), sem jamais anular Sua onisciência divina.
Longe de negar a divindade de Cristo, esses textos iluminam a profundidade de Sua identificação com a humanidade. O propósito central da passagem permanece sendo um chamado urgente à vigilância (Mateus 24:42), e não uma definição dos limites da essência divina de Cristo.
¹ Conforme a perspectiva defendida em: BRENO, Nicolas. Jesus: O Deus Encarnado, Londrina, Clube de Autores, 2025. p. 61-99.
² BÍBLIA. Grego. The New Testament in the Original Greek: Byzantine Textform (BYZ). Compilado e arranjado por Maurice A. Robinson e William G. Pierpont. Southborough: Chilton Book Publishing, 2005. Mateus 24:36.
³ BÍBLIA. Grego. Novum Testamentum Graece (NA28). Editado por Barbara e Kurt Aland, et al. 28. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2012. Mateus 24:36. O aparato crítico reconhece a força dos manuscritos alexandrinos (ℵ, B) para a inclusão, mas também registra a omissão na maioria dos manuscritos (𝔐).
⁴ BÍBLIA. Aramaico. Peshitta. Mateus 24:36. Transliteração baseada no texto .
⁵ BÍBLIA. Grego. The New Testament in the Original Greek: Byzantine Textform (BYZ). 2005. Marcos 13:32.
⁶ HÉLIO. A KENOSIS (esvaziamento) DE JESUS, O CRISTO (Fp 2:5-11). SolaScripturaTT. Disponível em: https://solascriptura-tt.org/Cristologia/Kenosis-EsvaziamentoDeCristoFp2-5-11-Helio.htm. Acessado em 17 de setembro de 2025.
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