O Legado de Niceia: A Influência de Constantino na Formalização da Doutrina Cristã
Embora o Credo Niceno, instituído sob a égide do imperador Constantino, não tenha alterado diretamente os versículos bíblicos, seu impacto foi profundo e transformador. O Primeiro Concílio de Niceia, em 325 d.C., representou um marco na transição da fé cristã, de um movimento com diversas correntes de pensamento para uma religião institucionalizada, cujos dogmas e estruturas serviriam de base para o Catolicismo Romano. Este processo de formalização doutrinária foi profundamente influenciado por imperativos políticos que buscavam a unificação do Império Romano. O palco para essa transformação foi montado anos antes, com o Édito de Milão em 313 d.C. Por meio desse decreto, o imperador Constantino encerrou a perseguição oficial aos nossos irmãos, garantindo-lhes liberdade de culto.¹ Embora este ato não tenha "criado" o Catolicismo, ele elevou a um status de legitimidade e abriu as portas para a eventual fusão entre Igreja e Estado. Claro que ele não era bonzinho! Constantino, um espertalhão que sabia que seu império político iria cair, e trocou seu império político em religioso, viu na fé em Cristo uma ferramenta poderosa para a coesão social e política de um império fragmentado.²
Foi nesse contexto que Constantino convocou o Primeiro Concílio de Niceia em 325 d.C.. Seu objetivo principal não era puramente doutrinário, mas sim prático: "buscava unificar o império sob uma única religião".³ Para alcançar essa unidade, era necessário resolver as profundas divisões doutrinárias que assolavam as comunidades. O concílio, portanto, debateu e estabeleceu uma série de decretos que se tornariam pilares da ortodoxia.
Os principais temas e decisões de Niceia foram:
1. A Controvérsia Ariana e a Formalização da Trindade: A questão mais urgente era a disputa sobre a natureza de Cristo, liderada por Ário, um presbítero de Alexandria. O Arianismo ensinava que o Filho (Jesus) era uma criatura, a primeira e mais elevada de todas, mas não coeterno nem da mesma substância que o Pai.⁴ Para resolver essa controvérsia, que ameaçava dividir as pessoas, o Concílio de Niceia condenou o Arianismo como heresia. Em seu lugar, estabeleceu o dogma da consubstancialidade, afirmando que o Filho é homoousios (da mesma essência) que o Pai, um termo técnico que se tornou a pedra angular da teologia trinitária ortodoxa.⁵
2. A Unificação da Data da Páscoa: Outra fonte de discórdia era a data da celebração da Páscoa. Algumas comunidades, conhecidas como "quartodecimanos", celebravam-na seguindo o calendário judaico (14 de Nisã), enquanto outras, especialmente em Roma e Alexandria, a celebravam no primeiro domingo após a primeira lua cheia da primavera. O Concílio de Niceia padronizou a segunda prática, desvinculando deliberadamente a principal festa da época de suas raízes judaicas e estabelecendo uma norma unificada para todo o império.⁶
3. A Resolução do Cisma Meleciano: O concílio também abordou o Cisma Meleciano, uma divisão interna na comunidade do Egito liderada pelo bispo Melécio de Licópolis. A controvérsia girava em torno do tratamento a ser dado aos irmãos que haviam renegado a fé durante as perseguições (os lapsi). Niceia estabeleceu regras para a reintegração desses fiéis e para a regularização do clero ordenado por Melécio, buscando restaurar a ordem e a autoridade episcopal na região.⁷ O que um imperador é capaz de fazer para salvar seu império!
4. A Promulgação dos Primeiros Cânones: Niceia foi o primeiro concílio a promulgar um conjunto de leis canônicas, ou seja, regras disciplinares para a Igreja universal. Foram aprovados vinte cânones que tratavam de uma variedade de assuntos, como a estrutura hierárquica (estabelecendo a autoridade dos bispos metropolitanos de Roma, Alexandria e Antioquia), a proibição da usura pelo clero, as condições para a ordenação e a conduta moral dos clérigos. Foi o início da criação de um corpo jurídico unificado para a instituição eclesiástica.⁸
O Concílio de Niceia, sob a direção de Constantino, foi o evento que determinou os dogmas e as estruturas basilares do que viria a ser o Catolicismo Romano. Embora não tenha alterado versículos da Bíblia, seu legado foi ainda mais profundo: ele transformou a fé em um sistema doutrinário e legal unificado, alinhado aos interesses do Império. As decisões sobre a Trindade, a Páscoa e a lei canônica não foram apenas resoluções teológicas, mas também atos políticos que pavimentaram o caminho para a criação de uma religião imperial. Infelizmente.
Notas de rodapé para consulta
¹ Eusébio de Cesareia. História Eclesiástica, Livro 10, Capítulo 5. Em sua obra, Eusébio transcreve o texto do Édito de Milão, que concede "tanto aos cristãos como a todos os homens livre poder de seguirem a religião que cada um quisesse".
² CHADWICK, Henry. The Early Church. London: Penguin Books, 1993, p. 125. Chadwick nota que "Constantino pode não ter sido um grande teólogo, mas ele era um estadista prático e estava convencido de que a unidade da Igreja era necessária para a unidade do Império".
³ HANSON, R. P. C. The Search for the Christian Doctrine of God: The Arian Controversy 318-381. Grand Rapids: Baker Academic, 2005, p. 152. Hanson afirma que "o interesse primordial do imperador era que a Igreja fosse pacífica e unida. Uma Igreja dividida era uma ameaça à estabilidade do Império".
⁴ KELLY, J. N. D. Early Christian Doctrines. 5ª ed. London: Continuum, 2000, p. 227. Kelly explica a doutrina de Ário: "O Filho, para ele, era uma criatura... Ele teve um começo; houve um tempo em que Ele não era".
⁵ TANNER, Norman P. (Ed.). Decrees of the Ecumenical Councils, Volume One: Nicaea I to Lateran V. Washington D.C.: Georgetown University Press, 1990, p. 5. O Credo de Niceia afirma explicitamente que Jesus Cristo é "da mesma substância (homoousion) que o Pai".
⁶ FERGUSON, Everett. Church History, Volume One: From Christ to the Pre-Reformation. 2ª ed. Grand Rapids: Zondervan, 2013, p. 196. Ferguson descreve como o concílio estabeleceu um método uniforme para determinar a data da Páscoa, independente do cálculo judaico, para promover a unidade.
⁷ DAVIS, Leo Donald. The First Seven Ecumenical Councils (325-787): Their History and Theology. Collegeville: Liturgical Press, 1990, p. 64-65. Davis detalha os cânones 6, 7 e 8, que tratam do Cisma Meleciano e da organização da autoridade episcopal para evitar futuras divisões.
⁸ SCHAFF, Philip. History of the Christian Church, Volume III: Nicene and Post-Nicene Christianity. A.D. 311-600. Grand Rapids: Eerdmans, 1910, p. 627. Schaff discute os vinte cânones de Niceia como "a primeira e mais importante coleção de leis eclesiásticas" que estabeleceu um precedente para a legislação conciliar futura.
Nicolas Breno
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